Em um país historicamente marcado por escândalos de corrupção e desconfiança nas relações entre empresas e o poder público, uma nova cultura de integridade começa a ganhar força. O Brasil está vivendo uma transformação silenciosa, mas profunda, no modo como organizações privadas, órgãos públicos e a sociedade civil interagem. Essa mudança é impulsionada por iniciativas de compliance, canais de denúncia, políticas de portas abertas e, principalmente, pela valorização do diálogo ético e transparente.
O avanço do compliance no setor privado
A adoção de programas de compliance tornou-se uma realidade para grandes e médias empresas brasileiras nos últimos anos. Segundo levantamento da consultoria KPMG, 88% das empresas listadas na B3 já possuem departamentos ou responsáveis exclusivos por integridade e conformidade. O movimento ganhou força após a promulgação da Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013), que responsabiliza empresas por atos ilícitos contra a administração pública.
Um exemplo emblemático é o da construtora Andrade Gutierrez, que, após ser envolvida em investigações da Operação Lava Jato, reformulou completamente seu sistema de governança. Hoje, a empresa mantém um canal de ética independente, promove treinamentos obrigatórios de integridade para todos os funcionários e exige cláusulas anticorrupção em todos os contratos com fornecedores e parceiros públicos. “A transparência passou a ser um valor central. Nossas relações com o setor público agora são documentadas, rastreáveis e auditáveis”, afirma Ana Paula Dourado, diretora de compliance da empresa.
O papel do setor público: novos mecanismos de controle social
O poder público também vem adotando práticas inovadoras para garantir mais transparência e participação social. O Portal da Transparência do Governo Federal, por exemplo, já recebeu mais de 200 milhões de acessos desde sua criação, permitindo que cidadãos acompanhem, em tempo real, a execução de contratos, licitações e repasses de recursos.
Outro destaque é o avanço das audiências públicas e consultas online, que se tornaram obrigatórias em processos de concessão e parcerias público-privadas (PPPs) em setores como infraestrutura, saneamento e mobilidade urbana. Em 2024, o governo do Estado de São Paulo realizou mais de 50 audiências públicas para discutir projetos de concessão de rodovias e aeroportos, envolvendo mais de 10 mil participantes presenciais e virtuais. “O diálogo com a sociedade é fundamental para garantir legitimidade e evitar conflitos futuros”, explica Mariana Borges, coordenadora de PPPs do estado.
Sociedade civil: vigilância e participação ativa
Organizações da sociedade civil desempenham papel decisivo na promoção da ética e da transparência. O Instituto Ethos, por exemplo, desenvolve há mais de duas décadas o Pacto Empresarial pela Integridade, que reúne mais de 400 signatários comprometidos com práticas transparentes nas relações com o setor público. Já a Transparência Internacional atua monitorando licitações e contratos públicos, além de oferecer ferramentas para denúncias anônimas de corrupção.
Em 2023, a ONG Observatório Social do Brasil evitou, por meio de sua atuação em 150 municípios, o desperdício de mais de R$ 500 milhões em recursos públicos, apenas com a fiscalização de editais e contratos. “A participação da sociedade é o melhor antídoto contra a corrupção”, resume Ney Ribas, presidente da entidade.
Desafios e perspectivas
Apesar dos avanços, desafios persistem. A cultura do “jeitinho” ainda resiste em muitos ambientes, e a fiscalização efetiva depende de recursos humanos e tecnológicos. Além disso, a proteção de denunciantes e a garantia de independência dos órgãos de controle são pontos críticos para o fortalecimento da integridade.
Especialistas apontam que o futuro das relações público-privadas no Brasil passa necessariamente pela consolidação de uma cultura de diálogo aberto, prestação de contas e ética. “A transparência não é apenas uma obrigação legal, mas um valor essencial para a construção de confiança e desenvolvimento sustentável”, afirma Walfrido Warde, advogado e autor do livro O Espetáculo da Corrupção.
A experiência recente mostra que é possível, sim, construir relações mais éticas e transparentes entre empresas, governo e sociedade. O caminho é longo, mas o Brasil já deu passos importantes. O desafio agora é transformar boas práticas em padrão e a ética em compromisso de todos.
Fontes consultadas:
- KPMG, Pesquisa de Integridade Corporativa 2024
- Portal da Transparência do Governo Federal
- Instituto Ethos
- Transparência Internacional
- Observatório Social do Brasil
- Entrevistas com especialistas e gestores públicos