O submundo dos combustíveis: a engrenagem oculta que drena o Brasil

Imagem desenvolvida por IA

No Brasil, o combustível não é apenas o que move carros e caminhões: é o que movimenta a economia, financia políticas públicas e sustenta cadeias produtivas inteiras. Mas por trás das bombas, existe um universo clandestino que desafia o Estado, ameaça a saúde pública, mina a confiança do consumidor e fortalece o crime organizado. O mercado irregular de combustíveis, operando nas sombras, custa bilhões ao país todos os anos e expõe a sociedade a riscos alarmantes. Esta reportagem mergulha nas entranhas desse sistema, revela seus mecanismos, seus impactos e as batalhas travadas para enfrentá-lo — com destaque para o papel do Instituto Combustível Legal (ICL) e das agências reguladoras.

O tamanho do problema: fraudes bilionárias e impactos invisíveis

Estudos recentes apontam que o mercado irregular de combustíveis no Brasil gera perdas anuais superiores a dezenas de bilhões de reais, somando fraudes operacionais e sonegação de tributos. Só em impostos não recolhidos, bilhões deixam de entrar nos cofres públicos todos os anos, dinheiro que poderia ser investido em saúde, educação e segurança. O restante do prejuízo resulta de operações fraudulentas como adulteração de combustíveis, roubo de cargas, bombas manipuladas e postos clandestinos.

Para dimensionar o impacto, basta dizer que, em anos recentes, o volume de combustíveis apropriado pelo crime foi estimado em bilhões de litros, o equivalente a uma fatia expressiva do mercado nacional. Se esse volume fosse recuperado para o mercado formal, o setor teria um salto de competitividade e o Estado, um reforço bilionário em arrecadação.

Como funciona o esquema: a engrenagem do crime

O mercado irregular de combustíveis é sofisticado e multifacetado, envolvendo diferentes elos da cadeia:

  • Sonegação e inadimplência fiscal: Empresas de fachada são criadas para operar por poucos meses, acumulando dívidas tributárias milionárias e desaparecendo antes de qualquer punição efetiva. O uso reiterado de liminares para evitar o pagamento de impostos é comum, criando distorções que podem chegar a uma parcela significativa do valor final da gasolina em alguns estados.
  • Adulteração química: Combustíveis são misturados a solventes, metanol e outros produtos tóxicos para aumentar o volume e, consequentemente, os lucros. O uso irregular de metanol, por exemplo, vem crescendo, trazendo riscos graves à saúde e ao meio ambiente.
  • Fraudes volumétricas: Bombas manipuladas entregam menos combustível do que o registrado, lesando consumidores e ampliando os lucros ilícitos.
  • Roubo de cargas e dutos: Quadrilhas especializadas desviam milhões de litros de combustíveis, especialmente na Região Norte, onde a atuação dos chamados “piratas dos rios” causa prejuízos anuais expressivos.
  • Lavagem de dinheiro e corrupção: O lucro fácil do mercado irregular financia outras atividades ilícitas, como tráfico de drogas, armas e corrupção institucional.

As consequências para a sociedade

O impacto do mercado irregular de combustíveis vai muito além do prejuízo fiscal e empresarial:

  • Concorrência desleal: Empresas que cumprem suas obrigações fiscais perdem espaço para concorrentes que, graças à fraude, conseguem praticar preços artificialmente baixos, levando ao fechamento de postos, perda de empregos e desestímulo ao investimento.
  • Risco ao consumidor: O abastecimento com combustíveis adulterados pode causar danos irreversíveis a veículos, aumentar o risco de acidentes e expor motoristas, mecânicos e frentistas a substâncias tóxicas. O metanol, altamente volátil, pode causar intoxicação grave, cegueira e até morte.
  • Drenagem de recursos públicos: A cada real sonegado, menos dinheiro é investido em políticas sociais, infraestrutura e serviços essenciais. Só na Região Norte, por exemplo, deixou-se de recolher centenas de milhões em impostos relativos à gasolina em anos recentes.
  • Erosão da confiança: A percepção de que o setor é permeado por fraudes afasta investidores, dificulta a atração de capital estrangeiro e compromete o desenvolvimento econômico sustentável.
  • Fortalecimento do crime organizado: O mercado irregular tornou-se uma das principais fontes de financiamento de organizações criminosas, que utilizam os lucros para ampliar sua atuação em outros setores ilícitos.

Instituto Combustível Legal (ICL) tornou-se referência nacional no combate ao mercado irregular. Sua atuação abrange:

  • Apoio à fiscalização: O ICL doa equipamentos, treina agentes e oferece suporte logístico para operações de apreensão, em parceria com órgãos como Receita FederalANPPolícia Federal e Ministérios Públicos.
  • Advocacy e articulação institucional: O instituto atua junto ao Congresso Nacional para aprovar leis mais rigorosas, como o Projeto de Lei que propõe punições mais severas para devedores contumazes e diferenciação clara entre inadimplentes eventuais e fraudadores profissionais.
  • Mobilização setorial: O ICL lidera iniciativas como o movimento Unidos pelo Combustível Legal e o Observatório Nacional de Combustíveis, reunindo empresários, órgãos públicos e cidadãos para monitorar irregularidades e pressionar por mudanças.
  • Educação e conscientização: O instituto promove campanhas educativas, produz conteúdo informativo e mantém canais de denúncia, fortalecendo a participação social no combate ao crime.

Empresas como BraskemIpirangaPetrobrasRaízen e Vibra apoiam o ICL, reforçando a necessidade de um setor mais ético e transparente.

O desafio da fiscalização e a importância das agências reguladoras

Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) é peça-chave na fiscalização do setor. O Programa de Monitoramento da Qualidade dos Combustíveis (PMQC), por exemplo, realiza milhares de análises mensais para identificar fraudes e orientar operações. Contudo, cortes orçamentários e suspensões temporárias do programa têm comprometido a capacidade de fiscalização, elevando os riscos para consumidores e investidores. Em períodos de menor fiscalização, irregularidades chegaram a índices alarmantes em algumas regiões.

Casos emblemáticos e investigações recentes

Investigações do Ministério Público e da Polícia Federal revelaram esquemas que envolvem desde a importação fraudulenta de nafta, usada para produzir gasolina mais barata, até redes de empresas controladas por “laranjas” para burlar o fisco. Em São Paulo, um único empresário chegou a controlar dezenas de empresas do setor, praticando diferentes tipos de fraude fiscal e operacional.

A ANP e o ICL têm intensificado operações, resultando em apreensões de milhões de litros de combustíveis adulterados e prisões de donos de postos fraudulentos. Ainda assim, a sensação de impunidade e a complexidade dos esquemas desafiam as autoridades.

Caminhos para a solução

O enfrentamento ao mercado irregular de combustíveis exige uma abordagem sistêmica e integrada, com destaque para:

  • Revisão e harmonização da legislação: Diferenciar devedores eventuais de contumazes e endurecer penas para fraudes e sonegação.
  • Simplificação tributária: Reduzir a complexidade do sistema para fechar brechas e estimular a formalização.
  • Investimento em tecnologia: Blockchain, inteligência artificial e rastreamento digital podem aumentar a transparência e dificultar fraudes.
  • Forças-tarefa permanentes: Cooperação entre Receita Federal, ANP, Polícia Federal e Ministério Público para desarticular redes criminosas.
  • Engajamento do consumidor: Exigir nota fiscal, abastecer em postos confiáveis, denunciar irregularidades e buscar informação são atitudes essenciais para fortalecer o combate ao mercado irregular.

O mercado irregular de combustíveis é uma ameaça sistêmica, que drena recursos, corrói a confiança, coloca em risco a vida e a saúde dos brasileiros e fortalece o crime organizado. O trabalho incansável do Instituto Combustível Legal, das agências reguladoras e de entidades parceiras mostra que é possível avançar, mas a vitória sobre o crime exige união, rigor e participação ativa de todos: poder público, empresas, entidades setoriais e, sobretudo, da sociedade civil. Só assim será possível garantir um mercado mais justo, seguro e transparente, onde o combustível que move o Brasil seja também sinônimo de legalidade, ética e confiança.

Reportagem baseada em dados e análises do Instituto Combustível Legal, ANP, Fundação Getúlio Vargas, Ministério Público, Polícia Federal e reportagens setoriais recentes.

Publicidade